Tarifa Social de Água e Esgoto: breve análise do PL 9.543/2018 aprovado pela Câmara de Deputados

Rosângela Lunardelli Cavallazzi
Coordenadora do Laboratório de Direito e Urbanismo (LADU/PROURB/UFRJ)
Professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Urbanismo/Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROURB/UFRJ) e do Programa de Pós-graduação em Direito/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PPGD/PUC-Rio)

Vívian Alves de Assis
Pesquisadora do Laboratório de Direito e Urbanismo (LADU/PROURB/UFRJ)
Doutora em Teorias Jurídicas Contemporâneas pelo Programa de Pós-graduação em Direito/Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ)
Pesquisadora de Pós-Doutorado nota 10 da FAPERJ no PROURB/UFRJ

O PL 9.543/2018, originalmente apresentado por Eduardo Braga (PMDB/AM) no Senado e alterado pelo Substitutivo de autoria do Deputado Pedro Campos (PSD/PE) foi aprovado pela Câmara de Deputados esse mês.

O projeto em questão cria a Tarifa Social de Água e Esgoto (TSAE), em âmbito nacional, com o objetivo de beneficiar os usuários com renda per capita (por pessoa da casa) de até meio salário-mínimo nacional (R$ 706), que estejam inscritos no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) ou em cuja família haja uma pessoa com deficiência e/ou um idoso de baixa renda com 65 anos ou mais. O valor da tarifa social seria equivalente ao menor de dois casos para os primeiros 15 m³ por residência:

  • 50% da tarifa aplicável à primeira faixa de consumo (variável em cada município); ou
  • 7,5% do valor-base do programa Bolsa Família (hoje em R$ 600). Com isso, esse percentual do valor-base corresponderia a R$ 45.

Essa tarifa diferenciada valeria apenas para os primeiros 15 m³ e o excedente de consumo seria cobrado com base na tarifa regular. Esses percentuais e limites seriam considerados padrões mínimos a serem seguidos pelos prestadores de serviços públicos de água e esgoto. Outros descontos e tarifas, estabelecidos em legislações estaduais e municipais ou em programas das prestadoras de serviços de água, já vigentes poderiam continuar a existir.

Da Competência da União sobre águas

A Constituição de 1988 concentrou na União a maioria absoluta das competências em matéria de águas (Barroso, 2002, p. 259): desde a competência legislativa com a referência genérica a águas, que consta no art. 22, IV, e a proteção ambiental e o controle de poluição (art. 24, I)  passando pela competência político-administrativa de criação do sistema de gerenciamento de recursos hídricos (art. 21, XIX), da definição de critérios para a outorga de uso da água (art. 21, XIX) e de diretrizes para o saneamento básico (art. 21, XX).

Portanto, a União, conforme art. 21, XX da Constituição, pode fixar parâmetros nacionais no que diz respeito à prestação do serviço de saneamento básico. Este é o caso do Projeto de Lei ora analisado que estabelece as diretrizes gerais de concessão de TSAE em âmbito nacional ao uniformizar os critérios de elegibilidade e a metodologia de cálculo da tarifa reduzida.

Neste sentido, a União pode, no exercício de suas competências, fixar um critério técnico que concretize as noções de interesse local ou comum em matéria de saneamento básico, aplicável de forma geral.

O relator, Deputado Pedro Campos, destacou em Plenário o caráter não obrigatório da TSAE criada pelo PL em questão. O intuito do referido PL ao eleger elementos técnicos para a concessão do benefício é dar um grau de certeza jurídica à questão, retirando-a das flutuações doutrinárias, nos casos em que as Companhias de distribuição de água adotem a Tarifa Social a partir desses incentivos.

A TSAE: instrumento de acessibilidade econômica

A Tarifa Social de Água e Esgoto (TSAE)[1] é uma importante ferramenta de combate à desigualdade socioeconômica e de promoção do acesso universal à água e ao saneamento básico, sendo capaz de assegurar a acessibilidade econômica de famílias em situação de vulnerabilidade.

A proposta do PL, ora analisado, de uniformização da TSAE tem o potencial de expandir o acesso econômico à água e esgoto nacionalmente e é importante ressaltar a previsão da cumulatividade de descontos prevista expressamente no art. 6º, § 2º do PL 9.543/2018:

§ 2º Os critérios e os percentuais estabelecidos neste artigo corresponderão a padrões mínimos a serem observados pelos titulares dos serviços públicos de água e esgoto, sem implicar revogação ou invalidação de regras, critérios ou descontos tarifários já instituídos em seus territórios. (grifo nosso)

Por outro lado, os descontos percentuais previstos no Projeto de Lei em questão não impedem o ajuste exacerbado de tarifas que vem se reproduzindo no Brasil e no Mundo, especialmente nos casos de privatização dos serviços de água e esgoto.

Do direito ao acesso à água como parcela do mínimo existencial

Conforme analisado a aprovação do PL, que tramita agora no Senado, pode apresentar avanços em relação a acessibilidade econômica que podem ser aprimorados com a ampliação da participação e debate sobre a proposta. Por outro lado, a estratégia da tarifa social vem se mostrado insuficiente em casos de extrema pobreza, o que motivou o surgimento de uma série de experiências de isenção da tarifa de água no Brasil e no mundo.

Assim, a tramitação desse PL deve ser acompanhada de um debate mais amplo sobre os valores das tarifas de água e esgoto aplicadas no país, principalmente nos casos de privatização, e sobre a necessidade de o Poder Judiciário reconhecer que, apesar do direito de acesso à água não estar expressamente previsto constitucionalmente, ele é um direito fundamental implícito em sentido estrito(Ferreira, 2020) que merece aplicação independentemente de regulamentação. 

A ‘cláusula aberta’ dos direitos fundamentais, também denominada de ‘cláusula de abertura constitucional’, admite   considerar   como   direitos   fundamentais determinadas situações jurídicas não previstas na Constituição, uma vez que o rol de direitos fundamentais é exemplificativo, conforme previsto no §2º do artigo 5º da Constituição Federal.

No âmbito do Poder Legislativo tramita na Câmara de Deputados a Proposta de Emenda à Constituição nº 6/21[2], desde 2018, que propõe a inclusão da água potável na lista de direitos e garantias fundamentais da Constituição[3]. A proposta deve ser aprovada para ampliar a efetividade desse direito fundamental, visto que atribui formalidade à norma que já é materialmente constitucional.

Somente com a previsão de isenção de uma primeira faixa de consumo[4], que representaria o real acesso à água e esgoto como parcela do mínimo existencial, para além do necessário para a sobrevivência, poderia ser garantido esse direito fundamental aos mais vulneráveis que não possuem condições de pagar sequer a tarifa social. Desta forma, a apresentação de uma emenda ao PL estudado, que delimite o volume dessa primeira faixa de consumo, isenta de pagamento, poderia tornar o acesso à água e esgoto justo e acessível a todos.

Referências bibliográficas

BARROSO, Luís Roberto. Saneamento básico: competências constitucionais da União, Estados e Municípios. Revista de informação legislativa. Brasília a. 38 n. 153 jan./mar. 2002.

FERREIRA, J. H. (2020). Direito fundamental de acesso à água e o mínimo existencial ambientalRevista De Direito Da Cidade11(4), p. 275–301.

FERREIRA, Laiana Carla; QUINTSLR, Suyá. Acesso da população de baixa renda aos serviços de saneamento: como garantir o Direito Humano à Água em um contexto de desigualdade? IV ENEPCP, Salvador, 2021.

MORETTI, Ricardo; BRITTO, Ana Lucia. Água como Direito: tarifa social como estratégia para a acessibilidade econômica. Rio de Janeiro: Letra Capital; Brasília [DF]: ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento, 2021.

TOSTES, Eduardo Chow De Martino. Teoria do Mínimo Vital de Água: por um diálogo necessário do Estado de direito com o Estado sem direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023.

Este estudo EDITAL Nº 11/2023 – PÓS-DOUTORADO NOTA 10 / 2023 foi financiado pela FAPERJ – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, Processo SEI 260003/000155/2024.


[1] Sobre tarifa social Cf. MORETTI, Ricardo; BRITTO, Ana Lucia. Água como Direito: tarifa social como estratégia para a acessibilidade econômica. Rio de Janeiro: Letra Capital; Brasília [DF]: ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento, 2021 e FERREIRA, Laiana Carla; QUINTSLR, Suyá. Acesso da população de baixa renda aos serviços de saneamento: como garantir o Direito Humano à Água em um contexto de desigualdade? IV ENEPCP, Salvador, 2021.

[2] Há três propostas em apenso à referida PEC. A PEC 258/2016, do Deputado Paulo Pimenta e outros, visa a incluir no artigo 6º “o acesso à terra e à água”. A PEC 430/2018, do Deputado Francisco Floriano e outros, sugere acrescentar ao artigo 5º inciso citando que a água “é um direito humano essencial à vida e insuscetível de privatização”. Por fim, a PEC 232/2019, do Deputado Orlando Silva e outros visam a acrescer ao artigo 6º o acesso à água tratada.

[3] O texto proposto pelo Senador Jorge Viana foi aprovado por unanimidade no Senado e pela Comissão de Constituição de Justiça da Câmara de Deputados.

[4] Com esse objetivo destaca-se a Teoria do mínimo vital da água. Cf. TOSTES, Eduardo Chow. De Martino. Teoria do Mínimo Vital de Água: por um diálogo necessário do Estado de direito com o Estado sem direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023.

Sobre Direito e Urbanismo

Grupo de pesquisa interinstitucional do PROURB-FAU-UFRJ que reúne profissionais das áreas do Direito e do Urbanismo.
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